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O direito à inclusão social das pessoas com deficiência: um caminho para o exercício da democracia



Escrevi este texto tem mais de 10 anos! Por isso, existe menção à estruturas estatais que não existem mais (a CORDE, por exemplo). Por ser anterior à LBI, o artigo não faz menção à esse estatuto, mas a nomenclatura foi revista para se adequar à atualidade. Embora sua antiguidade, penso que a discussão doutrinária está atual. Boa leitura!



Após muita luta, empreendida pelos movimentos sociais ligados ao portador de deficiência, surge em 1975 a "Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes" resolução elaborada pela Organização das Nações Unidas, aprovada pela sua Assembleia Geral e mundialmente enfatizada em 81 – o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD), que teve como tema "Participação e Plena Igualdade".

Acompanhando esse movimento mundial, no Brasil, em 1989, o então Presidente da República José Sarney, sancionou a Lei 7.853, publicada em 24 de outubro, dispondo sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), instituindo a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplinando a atuação do Ministério Público e definindo crimes.

O texto legal estatuiu que na sua aplicação e interpretação seriam considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, além de outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.

Visou a legislação em pauta garantir às pessoas com deficiência as ações governamentais necessárias ao pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo, à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie. Ademais, alçou a matéria à obrigação a cargo do Poder Público e da sociedade, criando um direito público subjetivo.

Para a tutela jurídica dos interesses coletivos e difusos dos portadores de deficiência, foi outorgada ao Ministério Público, à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios, bem como às associações constituídas a mais de um ano (na forma da lei civil), às autarquias, às empresas públicas, às fundações e às sociedades de economia mista que inclua entre as suas finalidades institucionais a proteção àquelas pessoas, legitimidade para proposição de ação civil pública.

Regulamentando a lei em questão, foi publicado o Decreto 914, de 06/12/93, posteriormente, revogado pelo atual Decreto 3298/99, que instituiu a política nacional para a integração da pessoa com deficiência. Assim como a lei em comento, a instituição dessa política objetivou assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais daquelas pessoas.

Da leitura dos textos legais, acima identificados, depreende-se que todo o conteúdo do direito à integração das pessoas com deficiência, se encontra no campo das liberdades positivas que requerem prestações a serem desenvolvidas pelo Estado, para a sua concretização (liberdades positivas).

De acordo com a terminologia utilizada por Olney Queiroz Assis e Lafaiete Pussoli, as liberdades públicas (aqui, o termo "liberdade" não está sendo utilizado como direito de primeira geração), como atualmente concebidas, compreendem, além de um direito individual (liberdade negativa), um direito a uma prestação do Estado (liberdade positiva). Desse modo, as liberdades positivas podem ser entendidas como certos comportamentos permitidos e garantidos pelo Estado, que os efetiva por meio de instrumentos específicos.

Essas prestações positivas por parte do Estado, passam a ser exigidas a partir do início do século XX, quando a necessidade dos indivíduos não se cinge mais, tão-somente, à garantia de direitos sociais e individuais, por meio de previsão constitucional ou de edição de leis. Nesse momento, a sociedade quer estar em contato com esses direitos, exigindo do Estado o fornecimento dos meios para o seu exercício.

A evolução histórica demonstra, assim, que o indivíduo julgou insuficiente a garantia de direitos pelo Estado (liberdade de expressão, liberdade de domicílio, liberdade de sigilo de correspondência), exigindo uma atuação efetiva daquele, ou seja, uma prestação positiva.

Ao lado, portanto, das liberdades negativas (comportamentos garantidos, sem ingerência do Estado), convivem as liberdades positivas (obrigações de o Estado comparecer para a prestação de certas tarefas).

Nesse contexto, o direito a eliminação de barreiras arquitetônicas, por exemplo, gera uma obrigação de o Estado promover ações que levem à adoção de medidas para a remoção dessas barreiras.

O mesmo ocorre com o direito à saúde e à educação. Somente a partir da participação efetiva do Estado, é que tal direito poderá se concretizar.

Não se trata, portanto, de exigir uma abstenção do ente estatal para que o direito não sofra uma interferência, tal como a primitiva ideia de liberdade, mas exatamente o contrário. Está-se diante de uma típica necessidade de intervenção do Estado para a consecução de um direito. Trata-se da necessidade de aquele atuar positivamente no sentido de promover as ações necessárias à garantia dos direitos da pessoa com deficiência.

Assim, todo o aparato legal estatuído por meio da Lei n. 7.853/89 e do Decreto n. 3.298/99 necessita, para a sua cristalização, de atitudes concretas do Poder Público. Não basta, segundo o conceito de liberdade pública, somente a disposição legal. Há a necessidade da efetiva atuação estatal para que as pessoas com deficiência tenham garantido o seu direito à integração social, o Estado precisa agir positivamente, de modo a colocar os detentores desse direito em contato com os mesmos, fornecendo os meios para o seu exercício.

Nesse sentido, qual o significado do direito à integração social das pessoas com deficiência? Qual o conteúdo desse direito? A resposta passa obrigatoriamente pelo direito à saúde, ao trabalho - protegido ou não - à vida familiar, à eliminação de barreiras arquitetônicas, ao transporte, à educação, ao lazer e à seguridade social.

Entretanto, existe um outro direito que permeia todos os acima mencionados e que se constitui na razão pela qual esse conjunto necessita ser garantido: o direito à igualdade. Ou seja, a inclusão social das pessoas com deficiência é pressuposto essencial para a garantia desse direito à igualdade.

Diante disso, o direito à igualdade surge como regra de equilíbrio dos direitos das pessoas com deficiência e somente entendendo-se esse princípio é possível compreender-se o tema da proteção excepcional devida às mesmas.

O entendimento do princípio da igualdade pressupõe o conhecimento dos dois sentidos dessa palavra. Assim, no entender de Luiz Alberto David Araújo, a regra isonômica não admite qualquer privilegio, tratando igualmente as pessoas. Isto, é o que se denomina igualdade formal ou igualdade perante a lei (Araújo, 1994:82).

Por outro lado, segundo o mesmo autor, a Constituição em seu artigo 5 º, cuida de realçar certos valores, direitos de pessoas ou grupos, que necessitam de proteção especial, especificamente ou distinguindo tais situações. Conforme, portanto, o modelo adotado pelo constituinte, está-se diante de uma autorização para desigualar (idem, 1994:82). Isto é o que se denomina igualdade material ou igualdade na lei.

No entender de Celso Antônio Bandeira de Mello, é possível desigualar ou tratar desigualmente situações, desde que haja correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação protegida (Bandeira de Mello, 1978 in Araújo, 1994:52).

A igualdade de tratamento, portanto, deve ser quebrada diante de situações lógicas que, obviamente, autorizem tal ruptura. É, portanto, razoável entender que a pessoa com deficiência tem, pela sua própria condição, direito à quebra da igualdade, em situações nas quais participe com pessoas sem deficiência.

É sensato, com isso, afirmar que a pessoa com deficiência tem direito a um tratamento especial de saúde ou à criação de programas de educação especial ou, ainda, ao acesso livre a qualquer local, por meio da eliminação das barreiras arquitetônicas.

Assim, a preservação do direito à igualdade, preconizado pelo art. 5º, inciso I, da Constituição Federal, é o que está implícito no direito à integração da pessoa com deficiência. Quando o Estado estatuí ações objetivando assegurar este último, está a preservar aquele primeiro.

Segundo Roberto Lyra Filho, "o Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas."

Partindo dessa premissa, é lógico afirmar que a Política Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência", instituída pela Lei n. 7.853/89 e pelo Decreto n. 3.298/99 necessita, efetivamente:

a) garantir o direito à inclusão social dessas pessoas, ou seja, seu direito à igualdade, porque, muitas vezes, os indivíduos, no dizer de Sérgio Muylaert, "têm a norma legal, mas não detêm os meios de promovê-la, como se manietassem um prisioneiro e lhe pusessem à frente, faminto, as mais finas iguarias e manjares orientais"; e

b) atender aos anseios dos movimentos liderados por aqueles que devem beneficiar-se dela. Ou seja, o substrato jurídico deve atender à perspectiva social e, mais uma vez, garantir o direito à igualdade das pessoas com deficiência, porque, nem sempre, a vontade do legislador representa as necessidades da coletividade ou dos grupos que a norma jurídica editada procurou proteger.

Assim, sendo o direito à inclusão social pressuposto do direito à igualdade da pessoa com deficiência, este, por sua vez, conforme abalizada doutrina de Paulo Bonavides, é o princípio regente dos direitos fundamentais de segunda geração, compostos dos direitos sociais, culturais e econômicos. Considerando que a inclusão dos portadores de deficiência visa a preservação da igualdade, consequentemente, o direito à inclusão social dos portadores de deficiência também integra a segunda dimensão dos direitos fundamentais.

Por sua vez, os direitos da primeira geração, direitos individuais; os da segunda, direitos sociais; e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz, ao patrimônio comum da humanidade, à comunicação, são infraestruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.

Os Direitos de 4ª Geração – UNIVERSALIDADE: direito à democracia, à informação e ao pluralismo – formam o ápice dessa pirâmide, seguido dos Direitos de 3ª Geração – FRATERNIDADE: direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e direito de comunicação; dos Direitos de 2ª Geração – IGUALDADE: direitos sociais, culturais e econômicos, direito à inclusão social das pessoas com deficiência e, finalmente pelos Direitos de 1ª Geração – LIBERDADE: direitos individuais - direitos civis e políticos. Os Direitos de 3ª geração, dentre os quais o direito à inclusão social das pessoas com deficiência formam o alicerce dos direitos universais. Os que compõem o ápice da pirâmide não se sustentam sem a garantia daqueles que formam a sua base.

Dessa forma a garantia do direito à inclusão, e, em última análise, do direito à igualdade dos portadores de deficiência, é essencial para a proteção do seu direito à DEMOCRACIA, direito este que, sendo de quarta geração, compendia o futuro da cidadania e o porvir da liberdade dessas mesmas pessoas, criando e mantendo os pressupostos elementares de uma vida em liberdade e na dignidade humana.

Embora seja correta a assertiva de que a Constituição já contempla esses direitos - à igualdade e à democracia - é, também, certo afirmar que esse texto carece de realização para que se torne eficaz. Nesse sentido, o que se necessita é a concretização do texto constitucional, por meio da aposição dos sujeitos desses direitos (pessoas com deficiência) ao seu efetivo exercício. No caso, há necessidade de mediação do poder público - atuação governamental, por meio da expedição de atos executivos - para essa operacionalização, inobstante a existência da Lei 7.853/89 e do Decreto 3.298/99.

BIBLIOGRAFIA:

ALCANTARA, Maria Emília Mendes. "Responsabilidade do Estado por Atos Legislativos e Jurisidicionais", São Paulo, RT, 1988.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. "A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência". Brasília. Coordenação Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. 1994.

ASSIS, Olney Queiroz e Lafaiete Pussoli. "Pessoa Deficiente - Direitos e Garantias". São Paulo. Edipro. 1992.

BASTOS, Celso Ribeiro, e BRITTO, Carlos Ayres. "Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais", Saraiva, São Paulo, 1982.

BOBBIO, Norberto. "O Futuro da Democracia", São Paulo, Paz e Terra, 2000.

BONAVIDES, Paulo. "Curso de Direito Constitucional", São Paulo, Malheiros, 1999.

CHAUÍ, Marilena. "Cultura e Democracia", São Paulo, Moderna, 1981.

COMPARATO, Fábio Konder. "Liberdades formais e liberdade reais", in Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, maio, 1980, Manaus.

FILHO, Roberto Lyra. "O que é Direito", São Paulo, Brasiliense, 1991.

JÚNIOR, José Geraldo de Souza. "Introdução Crítica ao Direito - série O Direito Achado na Rua", Brasília, Universidade de Brasília, 1993.

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