A
expressão “adaptação razoável” consta de nosso ordenamento jurídico desde que o
estado brasileiro assinou, em 2007, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD).
O
art. 2º da CDPD dispôs:
“art. 2º - Definições
Para os propósitos da
presente convenção:
(...)
‘adaptação razoável’
significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não
acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a
fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais.”
Com
a vigência da Lei nº 13.146, de 2016 (Lei Brasileira de Inclusão – LBI), o
conceito foi mais uma vez albergado pela legislação nacional. Em texto muito
similar ao da CDPD, a LBI assim dispõe:
“Art. 3º. Para fins de
aplicação desta lei, consideram-se:
(...)
VI – adaptações
razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não
acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a
fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em
igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos
e liberdades fundamentais.”
À
luz dos dois diplomas, a adaptação razoável é o emprego de todos os mecanismos
disponíveis para ajustar práticas, matérias, ambientes, regras gerais, às
diferenças entre as pessoas, para assegurar igualdade de oportunidades. Muito
simples, em princípio. Todavia, na prática, os sujeitos passivos desse direito
(Estado; entes privados que exercem função via concessão, permissão; entes que
contam com recursos públicos, mesmo que indiretamente; e particulares, na
medida em que se vinculam aos direitos fundamentais) nem sempre cumprem com seu
dever, pois, ao interpretar esse termo em conjunto com “ônus indevido”, questionam-se:
quais os mecanismos razoáveis? O que se deve entender por ônus indevido? A
expressão se refere apenas a despesas?
Considerando-se
a recente vigência da LBI, a doutrina acerca dessa questão nela fundamentada
ainda é escassa. Assim, há de se recorrer à interpretação da CDPD. Uma vez que
a LBI dispôs acerca dessa matéria de forma idêntica àquela albergada na
Convenção, o que se discutiu naquela sede é absoltamente válido para esta.
O
primeiro ponto que necessita de ficar assente é que existe um direito
fundamental à adaptação razoável e os titulares desse direito são as pessoas
com deficiência.
Para
discorrer acerca dos demais aspectos inseridos na interpretação dessa questão,
usaremos excelente doutrina lavrada por Letícia de Campos Velho Martel, em
artigo publicado na Revista Internacional de Direitos Humanos[1]. A autora, ao discorrer
sobre o assunto à luz da CDPD, firma que se não houver ônus indevido, a
ausência de adaptação razoável configura discriminação. Há o direito de não ser
discriminado correlato ao dever de não discriminação.
Ao
estabelecer o alcance do termo “razoável”, a autora afasta a concepção de que
razoável seria aquilo que é ordinário, corriqueiro, e recomenda que o termo
seja interpretado como eficaz para
adaptar o ambiente material e normativo às necessidades de cada pessoa com
deficiência com o mínimo de segregação e estigma possível, com atenção às
particularidades que tornam permissíveis excepcionar ou flexibilizar enunciados
e práticas gerais. Destaca também que eficaz não se restringe apenas aos
aspectos práticos, mas é extensível aos aspectos menos palpáveis, como evitar o
estigma, a humilhação, o constrangimento.
Ainda,
conforme estabelecido no início, é preciso analisar o termo ‘razoável’ em
conjunto com ‘ônus indevido’. O ônus indevido é a defesa que permite ao sujeito
passivo eximir-se de adaptar. Nesse aspecto, é imperioso aceitar que ônus existirá,
apenas que ele não pode ser indevido. Para esse arbitramento do que é indevido,
a autora relaciona dois fatores.
O
primeiro fator diz respeito à finalidade buscada pela medida geral que se
pretende excepcionar por meio da adaptação. Se o objetivo da medida for
frustrado de modo relevante, o ônus será indevido. Neste ponto, autora destaca
que não basta a quem adotou a medida demonstrar que ela foi tomada de boa fé,
de modo imparcial e igualitário. A defesa será completa apenas se for
demonstrado que a adaptação bloqueia o fim pretendido.
O
segundo, a comparação entre custos e benefícios, lembrando que os mesmos não se
exaurem na questão econômico-financeira. Contabilizam-se benefícios diretos e
indiretos, considerando-se os beneficiários primários, secundários e terceiros.
Em relação aos custos, chama a atenção para aqueles que são atenuados por
contrapartidas ou ganhos a que adapta, os quais vão desde incentivos, isenções
e imunidades estatais, até ganhos por marketing
de responsabilidade social. Os custos de estigmatização e humilhação também são
considerados.
Diante
dessa interpretação, podemos afirmar que:
-
as pessoas com deficiência são titulares de um direito fundamental à adaptação
razoável até o limite do ônus indevido nos mais diversos ambientes;
-
a adaptação compreende modificações, ajustes, amoldamentos e mesmo
flexibilizações no ambiente material e normativo no qual é pleiteada, por meio
do emprego dos mais diversos mecanismos;
-
razoável é a adaptação eficaz para o
indivíduo ou grupo, incluindo-se na ideia de eficácia a prevenção e a
eliminação da segregação, da humilhação e da estigmatização;
-
a defesa à adaptação razoável é o ônus indevido que assim será entendido
quando: a) adotar uma adaptação impede exageradamente o objetivo da medida
geral, ensejando riscos à segurança, saúde, bem-estar; b) no balanceamento de
custos e benefícios, a adaptação mostra-se demasiadamente custosa. Lembrando-se
que essa análise não se restringe aos elementos econômicos, nem se esgota nos
sujeitos ativo e passivo especificamente envolvidos.
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