“...
a modernidade produziu um mundo menor do que a humanidade. Sobraram bilhões de
pessoas. Não se previu espaço para elas nos vários projetos internacionais e
nacionais. No Brasil, essa exclusão tem raízes seculares. ”
Betinho
No dizer de Carmen Lúcia
Antunes Rocha, “para se ter uma sociedade democrática há de se ter,
necessariamente, o pleno acatamento ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Como agora pensada e estruturada a democracia nos diversos sistemas vigentes,
aquele princípio é axioma jurídico, o qual se firma e se afirma como fundamento
do sistema constitucional. ”[1]
Ainda, segundo a autora,
a dignidade da pessoa humana é princípio havido como superprincípio
constitucional, aquele no qual se fundam todas as escolhas políticas
estratificadas no modelo de direito plasmado na formulação textual da
Constituição.[2]
Assim é que na
Constituição de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana comparece no
art. 1º, inciso III:
“Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III
- a dignidade da pessoa humana; ”
Com o acolhimento deste,
o Estado é obrigado a adotar políticas públicas inclusivas, ou seja, políticas que incluam todos os homens nos bens
e serviços que os possibilitem ser parte ativa no processo socioeconômico e
cidadão autor da história política que a coletividade eleja como trajetória
humana.[3] Dentre eles, o coletivo
formado pelas pessoas com deficiência.
A história da construção
dos direitos humanos desse grupo compreende quatro fases:
·
uma fase de intolerância, em que a
deficiência simbolizava impureza, pecado ou castigo divino;
·
outra, marcada pela invisibilidade;
·
uma terceira, orientada por uma ótica
assistencialista, pautada na perspectiva médica e biológica de que a
deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco centrado no indivíduo
“portador de uma enfermidade”;
·
quarta, orientada pelos paradigmas dos
direitos humanos, em que emergem os direitos à inclusão social com ênfase na
relação da pessoa com deficiência com o meio em que ela se insere, bem como na
necessidade de eliminar obstáculos e barreiras superáveis, sejam elas
culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício de direitos
humanos.[4]
No Brasil, a partir da
Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram
ratificados pelo Estado, entre ele a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência e seu protocolo facultativo, em agosto de 2008. Portanto, além
dos direitos constitucionais previstos no âmbito nacional, esses indivíduos
passam a ser titulares de direitos internacionais. Vale dizer, passam a ter
direitos acionáveis e defensáveis no âmbito internacional.
Tornou-se signatário
desse instrumento em 3 de março de 2007. Após, o Congresso Nacional, por meio
do Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, aprovou a referida
Convenção. Diante dessa interação, o Brasil assume, perante a comunidade
internacional, a obrigação de manter e desenvolver o Estado Democrático de
Direito e de proteger, mesmo em situações de emergência, um núcleo de direitos
básicos e inderrogáveis desse coletivo, todos vinculados ao princípio da
dignidade da pessoa humana, uma vez que em seu preâmbulo, a Convenção
prescreve:
“Artigo
1
Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão
e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
”
Além disso, a
acessibilidade, bem como a mobilidade pessoal são princípios inspiradores da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. É o que dispõe os artigos:
“Artigo 9
Acessibilidade
1.
A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e
participar plenamente de todos os aspectos da vida, os Estados Partes tomarão
as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao
transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da
informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao
público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Essas medidas,
que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e barreiras à
acessibilidade, serão aplicadas, entre outros, a:
a)
Edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações internas e
externas, inclusive escolas, residências, instalações médicas e local de
trabalho;
b)
Informações, comunicações e outros serviços, inclusive serviços eletrônicos e
serviços de emergência.
Artigo 20
Mobilidade
pessoal
Os
Estados Partes tomarão medidas efetivas para assegurar às pessoas com
deficiência sua mobilidade pessoal com a máxima independência possível:
a)
facilitando a mobilidade pessoal das pessoas com deficiência, na forma e no
momento em que elas quiserem, e a custo acessível;
b)
facilitando às pessoas com deficiência o acesso a tecnologias assistivas,
dispositivos e ajudas técnicas de qualidade, e formas de assistência humana ou
animal e de mediadores, inclusive tornando-os disponíveis a custo acessível;
c)
propiciando às pessoas com deficiência e ao pessoal especializado uma
capacitação em técnicas de mobilidade;
d)
incentivando entidades que produzem ajudas técnicas de mobilidade, dispositivos
e tecnologias assistivas a levarem em conta todos os aspectos relativos à
mobilidade de pessoas com deficiência.
Assim como nos
instrumentos internacionais, a dignidade da pessoa humana é fundamento da
República Federativa do Brasil e revela-se em um valor consagrador dos direitos
fundamentais essenciais e inerentes à própria existência do homem, integrando a
acessibilidade esse rol de direitos, a fim de garantir a plena participação e
integração social das pessoas com deficiência. Nessa perspectiva, almejando-se
respeitar basilar princípio, o ordenamento jurídico pátrio, mediante normas
constitucionais e infraconstitucionais estabeleceu preceitos relacionados à acessibilidade
e sua efetivação.
A Constituição da
República disciplina no artigo 244 que “a lei disporá sobre a adaptação dos
logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo
atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras
de deficiência, conforme o disposto no artigo 227, § 2º”. Por sua vez, o
mencionado artigo 227, § 2º, da Constituição da República, disciplina que “a
lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso
público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir
acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”.
Depreende-se das
previsões que o comando do artigo 244 é dirigido para logradouros e veículos já
existentes, enquanto o artigo 227, § 2º é direcionado para construção de novos
logradouros e fabricação de transporte coletivo.
Com essas disposições, o
direito à acessibilidade firmou-se como direito fundamental da pessoa com
deficiência. No entanto, as previsões constitucionais não trouxeram o conceito
de acessibilidade. Essa tarefa, em um primeiro momento, foi cumprida pela Lei
10.098/2000 e, atualmente, pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei
13.146/2015) que em seu artigo 53, estatui:
“A
acessibilidade é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade
reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de
participação social. ”
O conceito trazido pela
LBI é adeso àquele configurado pela Convenção e dilata a definição de
acessibilidade para abandonar o estereótipo de que acessibilidade é algo que se
confunde apenas com rampas e inscrições em Braille.
O atual conceito
harmoniza-se, ainda, ao insculpido no art. 5º, inciso XV, da Magna Carta que
resguarda o direito fundamental de ir e vir, ao proteger a livre locomoção no
território nacional, ficando este cerceado quando barreiras são impostas à vida
autônoma e impendente das pessoas com deficiência.
Além disso, a não-observação
desse direito fundamental gera a ocorrência de nefasta exclusão social.
Conceito desenvolvido por Duarte e Cohen, afirmam os autores que a exclusão
produzida pelo meio acontece quando os espaços se transformam em materialização
de práticas sociais segregatórias e de uma visão de mundo que dá menor valor às
diferenças (sociais, físicas, sensoriais ou intelectuais). Ressaltam também que,
quando não são acessíveis, os espaços agem como atores de um apartheid silencioso que acaba por gerar
a consciência de exclusão da própria sociedade”.[5]
É esse apartheid secular que a concretização do
direito à acessibilidade visa combater, não se restringido, a sua efetivação, à
eliminação de obstáculos físicos, mas, igualmente, à eliminação de todas as práticas
exclusivas e discriminatórias.
Valéria Ribeiro
Coordenadora de
Inclusão e Acessibilidade
[1]
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a
Exclusão Social. Revista do Instituto de Brasileiro de Direitos Humanos, v. 2,
n. 2, 2001, p. 55.
[2]
Idem, p. 55.
[3]
Idem, p. 57.
[4]
Idem, p. 57.
[5] In Guia de Atuação do Ministério Público
– Pessoa com Deficiência – Direito à acessibilidade, ao atendimento
prioritário, ao concurso público, à educação inclusiva, à saúde, à tomada de
decisão apoiada e à curatela. CNMP. 2ª edição. Brasília. 2016, p. 11.
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